Por Davi Paiva
ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS!!!
Fazer um trabalho audiovisual sobre jogos de tabuleiro é mais difícil do que parece. Não é como um filme sobre futebol, que é o esporte mais popular no mundo, não é como baseball ou basquete, populares nos EUA, e nem é como um filme de boxe ou MMA, onde qualquer pessoa entende que um soco na cara é um sinal que o agressor está vencendo.
Deve ser por isso que a comunidade enxadrista ficou tão ansiosa quando a Netflix anunciou que lançaria a minissérie “O Gambito da Rainha” em outubro de 2020. A minissérie é baseada no livro homônimo de Walter Trevis em 1983 e conta a história de Beth Harmon, uma garota órfã que aprende a jogar xadrez nos anos 50 e 60 em um orfanato e vai galgando degraus com o passar do tempo no esporte até alcançar o direito de desafiar o campeão mundial.
Os números da minissérie são impressionantes: 97% no Rotten Tomatoes, fez a busca por xadrez no Google aumentar 41%, aumentou o número de inscritos em plataformas de xadrez on-line (os responsáveis atribuem parte disso à pandemia da COVID-19) como o Chess.com e trouxe visibilidade às jogadoras como nunca antes. Infelizmente, o último aspecto também revelou as mazelas que elas passam, de assédio ao descaso. E como moderador do maior grupo de xadrez do Facebook para falantes de língua portuguesa, falo por experiência que o esporte ainda é muito elitizado e pouco levado às periferias por questões burocráticas e conservadoras defendidas por pessoas que não possuem a menor noção da realidade de quem não tem como saber se começa por “Xadrez Básico” ou por “Aprenda Xadrez com Garry Kasparov” ou se simplesmente continua juntando dinheiro para pagar a conta de luz.
Mas a minissérie não é totalmente culpada por nada disso. E é sobre ela que vamos falar hoje.
Hoje vamos começar falando da presença e atuação de Anna Taylor-Joy, bem como o uso da imagem da mesma.
Só a presença de uma atriz atraente e com um nome em voga no mundo da moda chama a atenção por entrar na lista de personagens adaptadas de livros descritas como mais ou menos em termos de beleza, mas que ficaram bonitas nas telas. Isso pode ocorrer tanto pelo aspecto da popularidade da atriz quanto pelo fato que a produção masculina não iria querer que seu público passasse horas olhando uma mulher de rasa beleza. Sim. Eu sei. É errado e é machista. Mas é disso que falo quando digo que a série tem as suas parcelas de culpa.
Pelo menos a atriz mandou bem na atuação. Beth é uma personagem com Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) pela morte da mãe biológica e demonstra poucas emoções no decorrer da obra, se soltando só um pouco mais no final ao admitir sentimentos e ver que está perdendo pessoas importantes, como a sua mãe adotiva ou o zelador que lhe ensinou a jogar xadrez. E entre a infância e vida adulta, Beth se rende a vícios que vão de calmantes ao álcool.
O que não ficou legal é a forma como Beth é explorada na minissérie. Algumas enxadristas comentam que os poucos descasos que ela passou são moleza ao que uma enxadrista enfrenta até hoje. E o jeito insensível dela (por conta do TEPT) fez parecer que é fácil lidar com isso. E não. Não é fácil lidar com discriminação. Tal romantização cria a ideia que se Beth Harmon conseguiu vencer, qualquer garota consegue. E as coisas não são bem assim.
E por falar em romantização, o que não sobra é romantização do uso de drogas, do “gênio drogado”, do conceito da mulher que não pode se realizar amorosamente porque a profissão está acima de tudo, etc.
Como retratar uma mulher se acabando nas drogas? De calcinha e camiseta dando vários “ass shots” nela. Valeu, equipe de produção. Ajudaram pacas...
E sobre os outros atores e função dos mesmos, o que podemos dizer?
Primeiro temos uma covardia com Moses Ingram no papel de Jolene, a amiga de Beth no orfanato e que mais para frente a ajudou a se recuperar do vício em álcool e se reestabelecer. A série mal tem pessoas negras e o que mais tem tempo de tela só tem como função auxiliar a protagonista branca? Subverteram o conceito, mas praticamente Jolene é a “mãe negra” de Beth.
Se a minissérie fez sucesso, imaginem como seria se Moses Ingram ficasse com o papel principal...
Depois temos Marie Heller como a mãe adotiva de Beth. A meu ver, uma personagem muito interessante por mostrar como era a vida de uma mulher naquele tempo (totalmente servil ao marido) e que, infelizmente, só foi reencontrar prazer em viver um pouco antes de morrer.
E em seguida, temos um ou outro ator ou personagem que mereceu destaque: Marcin Dorociński fazendo o papel do típico russo frio e calculista, porém respeitoso (inspiração em Boris Spassky, talvez?); Thomas Brodie-Sangster que até tentou fazer o papel de descolado e cheio de estilo, mas não deixa de parecer uma criança de 12 anos tentando se passar por um adulto; Jacob Fortune que até convence como galã (pudera! Em meio a tantos caras feios, até eu seria o Michael B. Jordan!) e Harry Melling como Harry Beltik, o mais próximo de um namorado que Beth teve (porque Beth não pode ser realizada na vida amorosa e na profissional tanto pelo TEPT quanto pelo tropo que ela representa na narrativa).
Eis que o russo frio, mas educado, enfrenta a norte-americana tida como genial e problemática durante a Guerra Fria: qualquer semelhança com Fischer x Spassky é mera coincidência.
A comunidade enxadrista brasileira tratou a série como algo mais incentivador e instrutivo no xadrez do que a CBX (Confederação Brasileira de Xadrez, órgão máximo da instituição em território nacional) fez nos últimos anos e eu não só acho isso uma síndrome de vira-lata como também penso que isso for verdade, o filme “O Último Samurai” consegue promover e fomentar mais a esgrima japonesa que a CBK (Confederação Brasileira de Kendô) foi capaz de fazer. E sem contar que “O Gambito da Rainha” não é nem um pouco didático. Eu esperava ver jogadas na tela como temos os SMS de “Sherlock” expostos ou pelo menos um episódio de Beth aprendendo ou instruindo alguém tal qual temos em “Sangatsu no Lion”, que pelo menos ensina uma parte do que é o shogi. E infelizmente, nada disso aparece na minissérie.
O que não quer dizer que a minissérie seja de um todo ruim. Com atores aprendendo a jogar e consultoria do ex-campeão mundial Garry Kasparov, as movimentações ficaram bem naturais e a edição preferiu não mostrar as horas que se leva para jogar uma partida, preferindo focar em partidas rápidas.
Em suma, “O Gambito da Rainha” tem muitos méritos, promove um jogo muito conhecido, mas pouco popularizado (em parte por nossos índices educacionais, em parte por nossa falta de cultura em tal esporte, em parte pelo espírito brasileiro de não gostar de competir e sim de ganhar e em parte porque o xadrez é um esporte elitizado como eu disse anteriormente), que romantiza muita coisa ruim e apresenta coisas boas como uma mulher enxadrista (algo que não era retratado desde o filme “A Rainha de Katwe”, de 2016) e a possibilidade de reconhecimento e igualdade. Afinal, a última cena da minissérie é justamente a campeã mundial atingindo o ápice de sua realização e virtude indo jogar xadrez em uma praça. Sem discriminação e nem desconfiança de suas habilidades.
Pois é assim que o xadrez deveria ser.
Sem mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário